Ato Inseguro, Condição insegura: Será que é só isto?
Marília Veríssimo Veronese*
Carla Trotta Villar**
No inicio de seu processo civilizatório, o homem tinha uma relação direta com a natureza - dela, buscava a coleta para seu sustento. Depois veio a noção de territorialidade, posse da terra, interferência na natureza -produção, a princípio predominantemente agrícola. Ele se estabeleceu (fixou na terra), deixou de ser nômade, o trabalho ganhou um novo sentido em sua vida.
Mais tarde, com a industrialização, o surgimento da máquina, tudo muda novamente nas relações homem-trabalho. O certo é que através do trabalho o homem se "hominiza", produz-se a si mesmo na dignificação da realização - daí o ditado
"O trabalho dignifica o homem".
No sistema capitalista, a apropriação da maior parte dos bens está concentrada. Portanto, é o trabalho que vai potencializar nossas melhores condições de vida.
Capitalismo - contradição - exclusão - desemprego
Perder o trabalho (e uma das formas de perdê-lo é com o acidente de trabalho, que exclui o trabalhador) significa, portanto, angústia e frustração para o ser humano.
Então o que é trabalho?
É transformação de matéria prima em bens necessários à sobrevivência humana - é energia física e mental, é estar o tempo todo decidindo, julgando agindo - e , devido às pressões e "stress", nessa atividade que deveria ser bela e alegre, surge o risco, o cansaço...riscos que vão muito além de atos inseguros. Ao realizar uma tarefa, dedicamos nossa energia, nosso corpo e alma - e produzimos.
Para reproduzir e manter a vida humana, Individual e social - trabalhar
Mas qual é a realidade do trabalhador brasileiro?
Alguns dados importantes, obtidos com o DIEESE (Depto. Intersindical de Estudos Sócio Econômicos e Estatística) em 1996:
Entre 1986 e 1995 ocorreram mais de 7.300.00 0 acidentes no Brasil.
Destes, foram considerados acidentes típicos, na execução da tarefa, 1.874 por dia;
Acidentes de trajeto, 129 por dia;
Acidentes fatais: aproximadamente 12 mortes por dia, o que significa uma a cada duas horas - o que nos traz uma estimativa de 300.000 anos de vida perdidos por ano...considerando a expectativa média do brasileiro de 65 anos. Isto significa, comparativamente, o equivalente a um avião da TAM (onde morreram 120 pessoas) caindo a cada 10 dias no Brasil, em termos de vidas humanas. No entanto, esses dados não estão no Jornal Nacional e nem chocam tanto quanto a tragédia citada.
Isto que, segundo os técnicos do Ministério do trabalho (fonte: Conferência Municipal de saúde do trabalhador de Passo Fundo, 1997) a sub-notificação, ou seja, aqueles acidentes que não são nem comunicados chega a situar-se em torno dos 70%. (Fonte: Tese de Mestrado, Novembro de 1997, Autoria de Hélio Possamai)
O QUADRO É SOMBRIO. QUAIS SERÃO AS CAUSAS?
FATALIDADE? AZAR?
O QUE NÓS, TRABALHADORES, EMPREGADORES, BRASILEIROS ENVOLVIDOS NESSA SITUAÇÃO PENSAMOS SOBRE ISSO?
O QUE FAZER ?
Até então, a responsabilidade pelo acidente é colocada muito mais no Trabalhador - através dos atos inseguros. Essa tendência acabou criando uma "consciência culposa" nos brasileiros. O descuido, a facilitação, a "bobeira", o excesso de confiança são sempre apontados como causas dos acidentes. A idéia que o trabalhador comete erros, é leviano e descuida de sua segurança foi amplamente difundida pelos órgãos oficiais - como por exemplo a FUNDACENTRO, ligado ao Ministério do Trabalho- que centra as campanhas de esclarecimento e segurança no ato do trabalhador, o que nos remete à pensar:
Será que o trabalhador é negligente, desatento, irresponsável, "machão", resistente ao uso do EPI? Serão estas as causas?
Uma pesquisa realizada c/ um grupo de trabalhadores em 1997 revelou que os sujeitos levantam as seguintes categorias como as principais causas do acidente:
1- descuido
2- autoconfiança
3- capacitação
4- EPI
5- Trabalho perigoso (condições)
6- Pressa
7- Medo
8- Coerção
O que revela e ilustra aquilo que alguns autores estão chamando de "consciência culposa", ou seja, a forma com que foi repassada para o trabalhador de que os acidentes são causados por atos inseguros, e o indivíduo é o único responsável. A teoria da culpa pessoal permeia as explicações dos porquês dos acidentes. O trabalhador internaliza a culpa por todos os acidentes, verbalizando que "se distraiu, bobeou", etc. Esta consciência culposa está tão bem e maciçamente disseminada na sociedade pelos formadores de opinião que os próprios trabalhadores já nem questionam mais seu verdadeiro significado. Assumem a condição de "culpados" pelos acidentes dos quais são vítimas e que podem resultar em perda de membros do corpo, mutilações e até mesmo da própria vida.
Portanto, não que não exista o ato inseguro e a condição insegura. O que precisamos é compreendê-los melhor.
Através de um mergulho no funcionamento humano, podemos entrever alguns mecanismos que podem levar o indivíduo (sempre visto como sócio-históricamente constituído, mas também dotado de uma subjetividade e unicidade características) ao acidente, principalmente em condições "sub-standart" de trabalho:
Os autores que estudaram o comportamento humano no trabalho, nos auxiliam nesta compreensão. Referem que o medo ou a ansiedade intensa que podem existir nas condições de trabalho (por lidarem com equipamentos perigosos, ou sob muita pressão) são ocultados da própria consciência do trabalhador pelos mecanismos psicológicos de defesa - chamados de defesas contra o sofrimento, para que ele consiga desempenhar suas atividades laborais, que muitas vezes oferecem riscos reais. Podemos exemplificar seu uso nos casos onde para conviver com o perigo, é preciso lançar mão dos mecanismos - trabalhar em máquinas de corte, pilotar aviões, usinas nucleares, etc.).
À psicanálise recorremos para que, entendendo melhor os conflitos psicológicos, possamos compreender como os indivíduos ao se defrontarem com situações que causem ansiedade (máquinas que podem oferecer perigo, produtos químicos ...), e sem contarem com a possibilidade de uma total proteção, recorrem aos mecanismos defensivos numa forma de lidar com a realidade diária. Estes mecanismos de defesa são inconscientes, não percebemos que eles existem, porém fazem parte do nosso dia-a-dia em diversas situações, como por exemplo, ao dirigir um carro, manter relações sexuais sem proteção e até mesmo trocar uma lâmpada.
No âmbito do trabalho encontramos a negação e a repressão como saídas mais freqüentes para o enfrentamento das situações de sofrimento, porém constatamos que nem a negação dos riscos, nem a repressão do medo constituem-se em defesas duradouras, podendo ser rompidas a partir de experiências concretas de acidentes, passando a vivenciar a fragilidade perante as ameaças até então encobertas, e que agora são claramente percebidas.
Em estudos realizados na França foram observadas manifestações de pessoas que ficaram impedidas de voltar ao trabalho após o acidente, pois apresentavam uma "síndrome residual pós traumática", ou seja, os sintomas de medo e angustia não desapareciam, fazendo com que o trabalhador percebesse sua atividade profissional como algo muito perigoso impedindo desta forma o seu retorno.
Outro mecanismo bastante observado na realidade do trabalhador é a idealização. Quando a empresa é percebida pelos funcionários como forte e em franca expansão, com possibilidade de crescimento dos colaboradores, pode ocorrer por parte destes a idealização. Este mecanismo também funciona como encobridor em caso de uma excessiva cobrança de produção por parte das chefias: "quanto mais produção eu der pra' firma, mais ela vai crescer, e aí fica melhor pra' nós". Em função desta forma de pensar e sentir, cria-se um clima competição entre setores, ou colegas, em busca de melhores índices de produtividade. A partir desta realidade os acidentes podem acontecer de forma mais intensa, pois os funcionários para não perderem produção tomam atitudes inseguras, realmente, como fazer a manutenção das máquinas com as mesmas ligadas, ou correr ao invés de caminhar. Podemos notar que o ato inseguro pode realmente acontecer, mas ele tem uma origem inconsciente, inerente à condição humana, e não é simplesmente bobeira ou desleixo (esta é uma visão reducionista). A idealização funciona, nas situações de trabalho, não apenas como defesa contra o sentimento de coerção (pressão por produção) mas também como expressão dos desejos de auto valorização.
Os estudiosos dizem ainda que, além das defesas individuais, existem as estratégias coletivas de defesa, onde o grupo utiliza conjuntamente as defesas que funcionam no sentido de fazer com que os trabalhadores consigam conviver com os riscos de acidentes e de vida com os quais lidam diariamente, negando coletivamente estes riscos. Esta estratégia defensiva coletiva pode transformar-se, conforme sua intensidade, numa ideologia defensiva , o que é bastante sério, pois toda a organização passa a funcionar assim. O médico francês Cristophe Dejours (estudioso da psicopatologia do trabalho) considera que, nas ocupações perigosas, essa forma de defesa coletiva é a única explicação para o fato da execução do trabalho ser possível. (Uma vez que a negação coletiva afirma a inexistência do perigo, o medo individual é atenuado, possibilitando que as atividades ditas perigosas continuem a ser desenvolvidas). Essa pode ser uma das explicações do porquê acontecem tantos acidentes em uma empresa onde se faz campanhas de segurança convencionais, que não atentam para uma real compreensão do ser humano. As estratégias coletivas de defesa também podem aparecer através dos mecanismos de inversão e eufemização. O mecanismo de inversão funciona da seguinte forma: pelo fato do indivíduo sentir-se ameaçado pelo perigo (mesmo que inconscientemente) desafia-o, menosprezando e até mesmo indo de encontro às atividades de risco. Já na eufemização, ridiculariza os riscos, através de brincadeiras, chacotas, minimizando sua importância. Esta prática é muito usada pelos trabalhadores em geral, tendendo a utilizarem-se de respostas reativas para o enfrentamento dos riscos a que estão expostos.
Nos coletivos de defesa (estrutura acima descrita) há uma estruturação que tende a permanência de uma situação onde os riscos são negados (e consequentemente o número de acidentes aumenta proporcionalmente).
Como lidar com esta realidade?
Os trabalhadores, e principalmente aqueles que são gestores, precisam conhecer e entender estes mecanismos para a partir de então decodificar melhor as mensagens passadas pelo funcionamento do grupo. Discutimos e analisamos o Ato Inseguro sob uma ótica não tão simplista e reducionista como comumente é feito, e sim procuramos enfocar o aspecto psicológico e social.
É importante que tais conceitos, como mecanismos de defesa, sejam do conhecimento de todos os trabalhadores, e não privilégio de técnicos da área da saúde, pois através desta compreensão todos estarão mais capacitados a conviverem e liderarem grupos. Até então abordamos o comportamento individual e/ou grupal dos trabalhadores como causadores dos acidentes. Neste momento é importante também fazermos uma reflexão sobre o que realmente significa Condições Inseguras. Será que este problema se dá somente no espaço físico da empresa ( um chão escorregadio, uma escada muito alta, uma máquina sem dispositivo de segurança...)?
NÃO, esta também é uma visão simplista e reducionista.
As Condições Inseguras encontram-se nas relações estabelecidas entre os indivíduos, que por sua vez estão inseridos em um contexto social, econômico e político. Estas dimensões interferem profundamente na vida das pessoas e por conseqüência no seu dia-a-dia de trabalho.
Relações tensas, falsas, pouco afetivas, sem confiança, que geram pressões, caracterizam-se também como Condições Inseguras, pois propiciam a instalação do uso exacerbado de mecanismos adaptativos de defesa. O ambiente não físico ( dimensão das interações), é tão determinante da insegurança das condições de trabalho quanto o próprio universo físico da empresa, tal como máquinas, chão, escadas, meios de transporte, etc. Ele transcende o contexto da empresa. A própria situação do país (político-econômica) gera tensões que interferem no âmbito do trabalho.
Segundo dados obtidos na ONU, as condições de Saúde e Educação no Brasil pioraram significativamente nos últimos anos. A concentração de renda aumentou. Os brasileiros não vivenciam a plenitude da cidadania, sendo excluídos de muitos direitos fundamentais.
Como muitas vezes não temos total controle sobre estas variáveis, precisamos monitorar aquelas que podemos controlar, como o clima da organização, o entendimento do trabalhador como ser integral (bio-psico-social), a qualidade das relações que se estabelecem entre pares e superiores hierárquicos, a garantia da capacitação, treinamento e desenvolvimento de todos os colaboradores na sua função, para que possam desempenhá-las com segurança.
Afinal, existem alguns fatores que diferenciam as empresas que se preocupam com estas questões, daquelas que as ignoram.
Maior compromisso da direção e gerências com os programas de segurança; Enfoque humanista na relação com trabalhadores visando a integração;
Participação mais freqüente de trabalhadores líderes para treinar, ensinar, orientar seus colegas;
Canais de comunicação desobstruídos, possibilitando a expressão de todos;
Engenharia de Segurança atuante em relação aos problemas no local de trabalho;
Treinamento constante para minimizar o desconhecimento, a pouca experiência, as aptidões não desenvolvidas e a falta de conscientização;
Empresa como espaço de promoção de cidadania
ACIDENTE DE TRABALHO NÃO É CULPA E NEM DESTINO DE NINGUÉM...cabe a todos um esforço conjunto para atenuar as condições que os possibilitem!
Referências Bibliográficas:
Possamai, Hélio (1997) - "Minha culpa, meu destino: A representação social do acidente de trabalho" Dissertação de Mestrado - PUCRS - Orientador Prof. Dr. Pedrinho A . Guareschi
Seligmann, S. E. (1994) - "Desgaste mental do trabalho dominado" - Rio de Janeiro, Cortez Ed./UFRJ Ed.
McCormick, E.J. & Tiffin, J. (1997) - Psicologia Industrial
Hoeffel, M.G. (1990) - Acidente de trabalho: estudo de teorias sobre suas causas
* Psicóloga e Consultora Organizacional, mestranda em Psicologia Social e da Personalidade - PUCRS
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** Psicóloga e Consultora Organizacional com especialização em Psicologia Organizacional
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